Brasil - Resistir - [Edmilson Costa] Ao contrário da Rússia no período da revolução bolchevique ou da revolução chinesa de 1949, cujas transformações foram realizadas em nações atrasadas do ponto de vista econômico, o Brasil possui uma economia moderna, com elevado nível de desenvolvimento das forças produtivas, destacando-se uma industrialização integrada e dinâmica, avançado processo capitalista no campo, portanto maduro para o socialismo, muito mais maduro do que aquelas sociedades que fizeram suas revoluções na primeira metade do século XX.
Quando os bolcheviques tomaram o poder em 1917 encontraram um país com uma economia basicamente agrária e uma classe operária restrita apenas a algumas franjas industriais nas grandes cidades. Os revolucionários chineses, quando conquistaram o poder em 1949, encontraram também um país agrário, com a absoluta maioria dos trabalhadores no campo.
Portanto, tratava-se de países com baixo nível de desenvolvimento econômico, nos quais não estavam ainda maduras as condições materiais para a construção do socialismo desenvolvido. Por isso, essas nações tiveram que construir o processo industrial e modernização a agropecuária a partir de bases muito precárias. Levaram muitos anos para consolidar o desenvolvimento econômico com forças produtivas modernas. Isso marcou profundamente a formação sócio-econômica dessas revoluções, seus problemas, percalços e singularidades.
Como os fundadores do marxismo costumavam afirmar, a construção do socialismo é mais factível num país de base industrial, com uma classe operária numerosa, concentrada nos locais de trabalho, do que num país agrário, de maioria camponesa, com relações de produção atrasadas. Ressalte-se ainda que o desenvolvimento do capitalismo, na prática, destrói as bases da velha sociedade camponesa e, sob seus escombros, constrói a sociedade burguesa moderna e, assim, assenta as bases materiais para a sociedade socialista, que é a produção desenvolvida na cidade e no campo, capaz de suprir as necessidades de bens e serviços de toda a população.
Grande parte dos problemas vividos pelos países daquilo que ficou conhecido como socialismo real originou-se das condições objetivas atrasadas daquelas sociedades. Sem a industrialização madura e a agropecuária moderna e desenvolvida, a construção socialista foi realizada apalpando pedras, com heroísmo e debilidades, mas acima de tudo sem as condições materiais objetivas para a construção socialista. Portanto, a tarefa de construção da nova sociedade foi muito mais difícil do que seria se a revolução tivesse sido feita, por exemplo, na Alemanha industrializada, como os marxistas imaginavam.
As revoluções em nações economicamente atrasadas cobram um alto preço ao processo revolucionário. A herança camponesa da população, seus valores sociais ligados à religiosidade, ao atraso cultural, às relações de produção baseada na economia camponesa, a ausência de uma classe operária organizada em grandes conglomerados econômicos, além do cerco permanente do inimigo de classe, todos esses fatores contribuíram para que as tarefas da revolução fossem retardadas. Mesmo com todo o desenvolvimento científico e tecnológico da URSS, essa herança cobrava um alto preço à revolução.
A revolução socialista num país de base industrial, com a maioria da população vivendo nas grandes cidades, com uma classe operária concentrada nas grandes fábricas, com relações de produção capitalistas na cidade e no campo, reúne condições bem mais propícias para a construção do socialismo. A construção da nova sociedade já se inicia a partir de bases econômicas, sociais, políticas e culturais desenvolvidas, o que permite avançar mais aceleradamente para a construção da nova sociedade. Não será necessário nenhuma NEP (Nova Política Econômica) [1] , nenhum comunismo de guerra, nenhum passo atrás. Uma vez derrotada a velha classe dominante e consolidado o poder dos trabalhadores, a tarefa de construção da nova sociedade já encontra as bases objetivas para o socialismo desenvolvido.
O Brasil hoje reúne todas as condições para a construção de uma sociedade socialista desenvolvida tanto do ponto de vista material quanto cultural. Possui uma base material sólida, avançada e diversificada. Trata-se da sexta economia mundial, com um capitalismo maduro na cidade e no campo, monopolista e hegemônico em todas as regiões, com uma classe operária numerosa, concentrada nas grandes empresas fabris, com um nível de integração nacional extraordinário, o assalariamento generalizado no campo, sem disputas territoriais separatistas, uma só língua, um povo miscigenado, uma cultura nacional diversificada e rica. Portanto, com todas as condições objetivas para a construção da sociedade socialista.
1. Traços essenciais da formação sócio-econômica brasileira
Para compreendermos os fundamentos constitutivos da sociedade brasileira e as perspectivas do socialismo no Brasil, é necessário estudarmos as características fundamentais da nossa história e os traços específicos da formação sócio-econômica do País. Essa reflexão nos permite entender o momento histórico, a economia e a dinâmica atual em que se movem as classes sociais, seus interesses econômicos e políticos, as tradições, as marcas e os vícios do passado, bem como as vertentes complexas do presente. Somente com este diagnóstico baseado na análise concreta da realidade concreta, poderemos traçar as possibilidades de transformação futura de uma sociedade dinâmica e mutante como a brasileira.
O Brasil pode ser considerado um caso singular no desenvolvimento do capitalismo mundial, uma vez que, até o início dos anos 30 do século passado, era um País agrário-exportador, com uma economia que se estruturava a partir da exportação de uma mercadoria especial, o café. Iniciou sua revolução burguesa cerca de 300 anos após a revolução na Inglaterra, cerca de dois séculos depois a revolução industrial e um século após a formação do capitalismo monopolista nos países centrais. Em outras palavras, até a terceira década do século passado o Brasil era uma nação economicamente agrária, com mais de quatro séculos de atraso econômico, político e social.
Outra particularidade do desenvolvimento sócio-econômico brasileiro é o fato de que, após 1930 e, especialmente, nos anos 50, 60 e 70, o País realizou um processo de construção industrial em marcha forçada e em tempo recorde, processo que transformou o Brasil numa nação industrial, com um parque produtivo diversificado e integrado, elevado índice de urbanização, concentração operária em grandes unidades fabris, além do fato de que o capitalismo hegemonizou as relações no campo e subordinou as pequenas economias rurais às relações capitalistas de produção, muito embora esse desenvolvimento tenha sido realizado com dramática concentração da renda [NR] e desigualdade social.
O longo atraso sócio-econômico formou uma classe dominante autoritária, arrogante e viciada na impunidade, fruto de cerca de três séculos de escravidão, o que pode ser expresso no fato de que esses setores sempre procuraram afastar as classes populares das decisões econômicas e políticas do País. As classes dominantes também se formaram num processo de dependência aos circuitos do capitalismo internacional. Primeiro, ao colonialismo de Portugal, depois ao imperialismo inglês e atualmente ao norte-americano, o que marcou de maneira profunda a subordinação desses setores aos centros capitalistas mundiais, quer como associados, quer operando em torno de seus interesses.
1.1 A formação econômica e política
Como todos os países da América Latina, o Brasil teve um passado colonial que deixou marcas profundas na sociedade brasileira. Mesmo que produção estivesse integrada ao circuito internacional do capital mercantil, a economia brasileira nos três séculos de colonização funcionou como espaço de apropriação de recursos naturais e financeiros para a Metrópole portuguesa e, desta, para a Inglaterra. A produção interna era vigiada e controlada pela Coroa, os portugueses monopolizavam o comércio, o País ainda estava proibido de construir manufatura em qualquer região e o trabalho era baseado na mão-de-obra escrava. Como colônia de exploração , não interessava a Portugal a construção de uma economia interna, pois isso poderia representar no futuro a contestação à dominação colonial. [2]
Após a independência, em 1822, até a proclamação da República, em 1889, o País foi governado por uma monarquia absolutista e escravocrata, que manteve o País no atraso e na dependência. Os proprietários rurais eram a base de sustentação do regime, tanto que o Brasil foi o último País a institucionalizar a libertação dos escravos. A emergência da República, apesar de significar um avanço político em relação à velha monarquia, representou um novo pacto das elites agrárias do Rio de Janeiro e de São Paulo com o capital inglês, o que deu continuidade a uma economia agrário-exportadora, agora dependente das exportações de café, fato que contribui para bloquear por mais quase meio século as possibilidades de industrialização do Brasil. [3]
Quando o movimento abolicionista já estava às portas da vitória e os escravos fugiam das fazendas sem que os latifundiários tivessem condições de reprimi-los, a princesa Isabel, filha do imperador, resolveu decretar a libertação dos escravos (Lei Áurea, de 1888), bloqueando assim um movimento popular que poderia não só derrubar a ordem escravocrata mas, principalmente, contestar a estrutura fundiária do País. A proclamação da República pelo comandante do Exército, Marechal Deodoro da Fonseca, até anteriormente um velho monarquista, também representou uma antecipação ao movimento popular republicano e abriu espaço para que as classes dominantes mantivessem o País no atraso econômico e social.
A possibilidade de uma mudança estratégica nos rumos da sociedade brasileira só veio a ocorrer com a crise de 1929 e, posteriormente, com a revolução de 1930, a partir da qual os setores agro-exportadores foram subordinados e iniciou-se efetivamente uma política de Estado no sentido da construção da indústria nacional. Mesmo assim, a revolução de 1930 não realizou a fundo as tarefas clássicas da revolução burguesa, uma vez que conciliou com a velha ordem ao deixar intocadas as terras dos latifundiários. Essa debilidade fez com que, até hoje, a sociedade brasileira continue pagando um enorme tributo, em termos de desigualdade social e miséria nas grandes cidades e no campo, em função da ausência da reforma agrária.
Além disso, outro fator que viria marcar a formação econômica brasileira é o fato de que a construção industrial foi realizada quando o capitalismo mundial já estava na fase monopolista, o que dificultou a formação de uma burguesia com interesse em um projeto nacional, quer em função da conjuntura internacional, quer pelo fato de que o processo de acumulação interno estava muito aquém das possibilidades financeiras de construção de monopólios nacionais para rivalizar com os grandes conglomerados das economias centrais.
Quando foi realizada a industrialização efetiva, com o Plano de Metas, na segunda metade da década de 50, os monopólios dos países centrais já iniciavam o processo de internacional da produção e ds finanças. Sendo assim, dado o papel de liderança das transnacionais na industrialização brasileira, grande parte da burguesia nacional já emergiu subordinada aos centros internacionais do capital e passou a orbitar em torno da lógica do grande capital internacional. [4]
Entretanto, os três primeiros anos da década de 60, marcados por grande politização dos setores populares e intensificação da luta política e social nas cidades e no campo, abriram possibilidades para a construção de um projeto econômico e social onde os setores populares pudessem influir de maneira efetiva. Nesse período, estavam em disputa dois projetos que buscavam reorientar os rumos da economia e da sociedade brasileira – as Reformas de Base e o projeto dos setores ligados ao capital internacional. [5] O projeto das reformas de base visava um desenvolvimento econômico com elevado grau de autonomia e reformas sociais, enquanto o outro projeto estava ligado aos circuitos do capital internacional e a disciplina dos movimentos sociais.
Como as Reformas de Base eram apoiadas pelos setores populares, partidos políticos ligados à pequena burguesia, ao trabalhismo e a alguns setores da burguesia nacional, além do fato de que o governo João Goulart apoiava essas reformas, muitos setores políticos, especialmente o Partido Comunista Brasileiro (PCB), principal organização política de esquerda na época, acreditavam que era possível uma frente única (proletariado, setores médios, camponeses e burguesia nacional), onde a burguesia nacional teria um papel protagonista, em função de suas contradições com o imperialismo, como se afirmava na época. Só numa etapa posterior, quando estivessem removidas as causas que mantinham o País no atraso, é que se abririam os caminhos para a revolução socialista, como assinalava a Declaração de Março de 1958, do PCB: [6]
"A sociedade brasileira está submetida, na etapa atual de sua história, a duas contradições fundamentais. A primeira é a contradição entre nação e o imperialismo norte-americano e seus agentes internos. A segunda é a contradição entre as forças produtivas em desenvolvimento e as relações de produção semi-feudais na agricultura. A sociedade brasileira encerra também uma contradição entre proletariado e a burguesia ... mas esta contradição não exige uma solução radical na etapa atual. Nas condições presentes de nosso País, o desenvolvimento capitalista corresponde aos interesses do proletariado e de todo o povo. A revolução no Brasil, por conseguinte, não é ainda socialista, mas antiimperialista, anti-feudal, nacional e democrática" [7]
Esta etapa da revolução prepararia o terreno para as mudanças mais profundas, quando então o proletariado, mais fortalecido e organizado, passaria a hegemonizar o processo revolucionário e iniciaria a de transição para o socialismo: "A solução completa dos problemas que ela apresenta (a revolução, EC) deve levar à inteira libertação econômica e política da dependência para com o imperialismo norte-americano; à transformação radical da estrutura agrária, com a liquidação do monopólio da terra e das relações pré-capitalistas de trabalho; ao desenvolvimento independente e progressista da economia nacional e à democratização radical da vida política. Estas transformações removerão as causas profundas do atraso de nosso povo e criarão, com o poder das forças antiimperialistas e anti-feudais, sob a direção do proletariado, as condições para a transição ao socialismo, objetivo não imediato, mas final, da classe operária brasileira". [8]
O desfecho desse processo foi o golpe militar de 1964, que veio sepultar as últimas ilusões sobre o papel progressista da burguesia nacional, uma vez que a maioria absoluta dessa classe apoiou o golpe. Ao longo dos 21 anos de ditadura (1964-1985), o governo militar construiu um modelo econômico antinacional e antipopular, com a ampliação do domínio do capital estrangeiro nos setores dinâmicos da economia; implantou um arrocho salarial permanente que transformou o País numa economia de baixos salários. Em contrapartida, consolidou um setor estatal que cumpriu o papel de linha auxiliar do processo de acumulação dos grandes grupos econômicos. Ao final da ditadura, em função das dificuldades econômicas e políticas, o governo militar ainda deixou como herança os acordos com o Fundo Monetário Internacional, processo que levou à desorganização da economia brasileira e ao ciclo de duas décadas perdidas.
O fim do governo militar e o processo de transição democrática não foram capazes de desmontar a estrutura construída pela ditadura. Pelo contrário, com a vitória de Fernando Collor, em 1989, o Brasil ingressaria nos anos 90 inteiramente alinhado ao projeto neoliberal. No período de dois anos que durou seu breve mandato, realizou-se severos cortes nos gastos públicos, demissão de funcionários públicos, redução dos salários, privatizações de várias empresas estatais, desregulamentação, abertura da economia para o exterior e ofensiva contra direitos e garantias dos trabalhadores.
No entanto, a corrupção generalizada levou ao impeachement de Collor e, em seguida, à implantação do Plano Real e, posteriormente, eleição de Fernando Henrique Cardoso à presidência da Republica, em 1994. Esse governo aprofundou de maneira radical a política neoliberal no Brasil: privatizou a absoluta maioria dos setores sob controle do Estado, como energia elétrica, a siderurgia, as telecomunicações, o setor ferroviário, a mineração, os bancos estaduais, entre outros. Reformou a Constituição para favorecer o capital internacional, realizou a reforma da previdência, ampliou o arrocho salarial e a ofensiva contra os direitos dos trabalhadores. [9]
O governo FHC significou não apenas a privatização generalizada da economia brasileira, por grandes grupos nacionais e internacionais, como também uma mudança de qualidade no processo de acumulação no País, marcada pelo estreitamento das relações entre o capital financeiro internacional e a burguesia associada brasileira. O governo FHC articulou um projeto que colocou os interesses do capital financeiro como norteador de sua política econômica, unificou a burguesia associada, disciplinou eventuais setores industriais prejudicados com a nova ordem, sucateou a infraestrutura e os equipamentos sociais e fragilizou o poder regulador do Estado. "Para os formuladores dessa nova política não era mais necessário o velho Estado Nacional para organizar seus interesses: isso seria feito a partir do mercado e da economia globalizada". [10]
Essa política econômica viria sepultar as possibilidades de um papel protagonista da chamada burguesia nacional em qualquer processo de transformação social e política no Brasil, tanto porque a grande maioria do setor estatal da economia foi entregue ao grande capital internacional e à burguesia associada, quanto porque o neoliberalismo reduziu severamente a participação do capital nacional na economia. Em função da abertura econômica e da valorização por longo período do Real , vários setores do capital nacional desapareceram ou ficaram muito fragilizados, como o setor de autopeças, brinquedos, eletroeletrônico, têxtil, entre outros, ou ainda se transformaram em rentistas ou comerciantes de produtos internacionais, quando venderam suas empresas ao capital estrangeiro.
1.2 A formação social
Do ponto de vista social, é importante também analisarmos os aspectos históricos que marcaram nossa formação para compreendermos a atual sociedade brasileira, as marcas permanentes que vinculam as classes dominantes à impunidade, ao racismo, ao desrespeito aos trabalhadores, à falta de democracia nas relações capital-trabalho e aos baixos salários que se pagam no Brasil, bem como às causas das debilidades organizativas e ideológicas dos trabalhadores. Temos no Brasil uma classe dominante obtusa, autoritária, viciada na baixa remuneração do trabalho e ao desrespeito aos direitos e garantias dos trabalhadores. Ao mesmo tempo deve-se registrar um baixo nível de sindicalização e organização dos trabalhadores e uma massa enorme de subempregados que ao longo de nossa história têm a sobrevivência como único horizonte de suas preocupações.
Durante todo o período colonial, tanto no ciclo da economia açucareira quanto no ciclo do ouro, todo o trabalho foi realizado com mão-de-obra escrava, capturada na África e trazida ao Brasil nos porões infectos dos navios negreiros, sendo que boa parte morria nesse percurso e tinham seus corpos lançados no Atlântico [11] . Os sobreviventes, ao chegarem ao Brasil, eram vendidos como animais de carga aos donos dos engenhos, das minas e das fazendas. Vivendo nas senzalas, trabalhando de sol a sol no plantio, colheita e moagem da cana-de-açúcar, nas minas de ouro ou nas fazendas de café, tratados brutalmente, surrados e seviciados pelas conveniências dos senhores escravagistas, seu tempo médio de vida útil era de cerca de 10 anos. Os senhores dispunham não apenas da força de trabalho, mas da própria vida dos escravos e não eram raras as mortes e assassinatos daqueles que se rebelavam nas fazendas.
Mesmo com a independência e a libertação dos escravos, as classes dominantes sempre encontraram uma maneira de disciplinar os trabalhadores e reprimir suas manifestações, tanto que até a década de 30 do século XX a questão social era tratada como caso de polícia. [12] No período da economia cafeeira, os proprietários rurais ainda conseguiram prolongar por cerca de meio século o trabalho escravo nas fazendas de café. As pequenas economias rurais, o artesanato e a mão-de-obra livre não puderam assim se desenvolver porque tanto a Metrópole no período colonial quanto os imperadores herdeiros da Coroa portuguesa não tinham interesse no desenvolvimento de uma economia industrial.
No período de transição da mão-de-obra escrava para o trabalho assalariado, as classes dominantes encontraram uma fórmula para obstruir a constituição de um mercado de trabalho livre, quando influenciaram o governo a subvencionar a imigração de europeus ao Brasil numa quantidade muito maior do que a necessário para as lavouras do café. [13] Com isso, formou-se um expressivo exército de reserva, o que possibilitou às classes dominantes da época pagar baixos salários aos trabalhadores livres. Não raro esses trabalhadores entravam em conflito com os barões do café que os queriam tratar com a truculência do período escravagista.
A revolução de 1930, apesar das conquistas sociais como o salário mínimo, as férias e descanso semanal remunerado, além de outros direitos, criou um sindicalismo vinculado ao Estado, no qual os sindicatos só poderiam funcionar se fossem aprovados pelo Ministério do Trabalho. Essa medida contribuiu para a formação dos sindicatos amarelos (no Brasil chamado de pelegos), atrelado ao governo e aos patrões e pouco dispostos à luta de classes. Esse tipo de sindicalismo criou raízes tão profundas que até hoje a maior parte do sindicalismo brasileiro pode ser considerado pelego.
A ditadura militar decretou um conjunto de medidas não apenas restritivas ao sindicalismo e aos direitos dos trabalhadores, mas principalmente o confisco permanente dos salários. Ainda nos anos de chumbo, o governo militar prendeu, torturou, perseguiu e assassinou dirigentes sindicais, realizou intervenções nos sindicatos e, na prática, proibiu o direito de greve, uma vez que a legislação era tão restritiva que inviabilizava qualquer movimento grevista. Isso sem levar em conta o fato de que organizar os trabalhadores, tanto nas empresas quanto nos sindicatos, significava um enorme risco de morte para os sindicalistas. Foi nesse ambiente que prosperou o sindicalismo amarelo, assistencialista, desligado das bases, o que contribuiu de maneira definitiva para que a ditadura militar instituísse reajustes salariais abaixo da inflação, cujo resultado foi a consolidação de uma economia de baixos salários e a brutal concentração de renda [NR] [14] no País.
Outro aspecto peculiar das classes dominantes brasileiras, que marca seu profundo autoritarismo, é o fato de que o Partido Comunista Brasileiro (PCB) foi obrigado a atuar na ilegalidade por cerca de 62 anos, tanto nos período de ditadura quanto nos governos civis. Fundado em 1922, logo depois passaria a atuar na clandestinidade e somente nos anos de 1946 e parte de 1947 pode atuar legalmente. Em 1947 foi colocado novamente na ilegalidade, seus parlamentares perderam o mandato em todo o País, e só veio a conquistar existência legal novamente em 1986, com a redemocratização. Como os comunistas são os principais interessados na organização e educação dos trabalhadores, a existência ilegal do PCB dificultou a formação da consciência de classe dos trabalhadores no Brasil, contribuindo assim para o atraso ideológico e organizativo ainda hoje existentes.
Essa conjuntura se tornou mais complexa com a implementação do neoliberalismo e da reestruturação produtiva nos anos 90 no Brasil. Como ocorreu no mundo inteiro, o neoliberalismo, do ponto de vista social, significou uma vingança de classe da burguesia contra os trabalhadores. Sem a âncora soviética, o capital se sentiu à vontade para avançar sobre direitos e garantias dos trabalhadores, reduzir salários e pensões e praticar uma ofensiva contra as liberdades sindicais.
Os empresários passaram a reduzir os salários, desestimular abertamente a organização dos trabalhadores nos sindicatos e praticar generalizadamente a cooptação de dirigentes sindicais. Os meios de comunicação completaram esse processo semeando a confusão ideológica, incentivando abertamente o individualismo e a possibilidade quimérica dos trabalhadores terem no capitalismo a oportunidade de montar o seu próprio negócio e, para disfarçar o assalariamento e as contradições de classes, os trabalhadores passaram a ser tratados como "colaboradores" e não mais empregados, tudo isso como o objetivo de camuflar o assalariamento, a exploração e as contradições de classe.
Outra característica das classes dominantes brasileiras é seu apego ao patrimonialismo. Mesmo com o desenvolvimento do capitalismo e a constituição de monopólios em praticamente todos os setores da economia, parcela expressiva dos grupos econômicos brasileiros ainda possui controle familiar. O Votorantim, por exemplo, maior grupo privado brasileiro, pertence apenas a uma família, os Ermírios de Moraes. Mas isso não é exceção. Se observarmos os principais grupos privados, poderemos constatar o quanto os grupos familiares ainda controlam o grande capital no País. [15]
Em outras palavras, esse conjunto de fatores econômicos e sociais, que se acumulam desde o período colonial, deixou marcas profundas nas classes dominantes brasileiras. Trata-se de um bloco social que se formou viciado na impunidade e na prática de afastar o povo das decisões econômicas e políticas. Essas classes também ganharam enorme experiência em realizar acordos por cima (pacto das elites) como forma de se antecipar às rupturas sociais e econômicas. Foi assim na época da independência, quando o imperador que aqui ficara em substituição ao monarca-pai que voltara a Portugal, proclamou a independência, antecipando-se ao movimento nativista. Assim também ocorreu com a libertação dos escravos, a proclamação da República, revolução de 1930 e com o processo de redemocratização na segunda metade da década de 80 do século passado.
Em função dessas características, as classes dominantes brasileiras, que já orbitavam sob a lógica do grande capital internacional, quer associadas, quer ligadas aos fluxos de comércio e das finanças internacionais, perderam completamente a possibilidade realizar sequer as reformas que já foram realizadas por seus congêneres em outras partes do mundo. Copiam como papagaios os valores dos países centrais e parcela significativa se envergonha até de sua condição de brasileiro; preferiam ter nascido nos Estados Unidos ou Europa. Apavoradas com qualquer possibilidade de mudanças no Brasil, guardam parcela expressiva de seus recursos financeiros nos paraísos fiscais espalhados pelo mundo a fora. Portanto, não têm condições de cumprir nenhum papel nem contra o imperialismo e muito menos nas futuras transformações econômicas e políticas que o País necessita.
2. As décadas de 80 e 90 e as mudanças estruturais
Ao longo dos anos 30 até o início de 1980 o Brasil teve um longo ciclo de crescimento econômico, com taxas superiores ao desempenho da maioria dos países capitalistas. Para se ter uma idéia do dinamismo da economia brasileira, nesse período de meio século as taxas de crescimento anuais médias do PIB registraram índice de cerca de 6%. [16] Se levarmos em conta que em 1929 registrava-se o início do processo da grande depressão mundial e, no Brasil, em 1930 iniciava-se a revolução burguesa tenentista e, posteriormente, a Segunda Guerra Mundial, portanto um período de grande turbulência econômica, a economia brasileira foi marcada por um longo período de crescimento econômico continuado. Essa dinâmica pode ser melhor observada a partir de meados dos anos 40. Por exemplo, entre 1947, quando foram efetivamente iniciadas as aferições estatísticas no País, pela Fundação Getúlio Vargas, e 1980, quando se encerrou o longo ciclo sócio-econômico iniciado em 1930, poderemos constatar que a economia brasileira teve um crescimento médio acima de 7% ao ano.
Tratou-se, portanto, de um Kondratiev inteiro de crescimento econômico, mas essa performance seria truncada bruscamente nos anos 80 e 90, quando a economia marcou uma trajetória completamente diferente, com a regressão de todos os indicadores econômicos e sociais. Observou-se nos anos 80 e 90 uma queda impressionante no Produto Interno Bruto (que registrou um crescimento anual médio nestas duas décadas de apenas 2,5%), aumento do desemprego, redução nos rendimentos dos trabalhadores e flexibilização de seus direitos, elevada concentração de renda [NR] e uma queda visível no padrão de vida da população, além da privatização de maior parte do patrimônio público. O processo de estagnação econômica destas duas décadas perdidas foi um período atípico na economia brasileira moderna e só pode ter ocorrido em função de circunstâncias muito especiais, grande parte delas ligadas às relações de subordinação da economia brasileira às economias centrais, além dos percalços da própria dinâmica do modelo econômico brasileiro.